segunda-feira, 29 de abril de 2013

Muito aquém das letras


Remexendo as gavetas durante a mudança, achou, lá no fundo, um pequeno bloco. Capa vermelha, folhas já amareladas, gastas. Estava repleto de poemas de sua autoria. Pôs-se a ler. Relembrou os tempos em que escrevia quase todos os dias, em lugar qualquer. Saia fácil, as palavras vinham naturalmente... até o dia em que começou a questionar o que colocava no papel.

O seu maior erro foi tentar racionalizar a criação. Perdeu o fio da meada. Acontece que não sabia de onde vinha tudo aquilo. Não era ele... era invenção. Ele era só mais um cara, com uma vidinha sem graça, igual a milhões de outros. Roberto. Não era um apaixonado, embora descrevesse com perfeição o ardor da paixão. Não tinha uma amada, embora inventasse musas inspiradoras tão perfeitas que mais parecia um romântico da primeira geração. Não sabia contar piadas nem ser irônico, embora conseguisse construir sátiras aclamadas pelo público e crítica.

Costumava sentir inveja daqueles que escreviam sobre a própria vida, amores vividos ou a respeito da beleza do cotidiano. Seus textos se distanciavam da rotina. Eram idealizados, puramente ficcionais. Não conseguia encontrar dentro de si ódio ou amor suficientemente intensos, que transbordassem para o papel. Era morno. Divagava sobre o tudo e o nada, mas jamais sobre si. Os poetas pareciam ser loucos, insanos, mas ao mesmo tempo decididos. Sabiam quem eram, ou pelo menos quem queriam ser. Roberto nunca soube. Costumava ser apenas poeta. Hoje, nem isso.

Idoso, aposentou-se não só da literatura, mas também do intelecto. Se já não escrevia mais, nem tampouco lia. Os livros serviam apenas para juntar poeira e encher a estante do quarto. Ao empacotá-los, no entanto, separou a obra de Fernando Pessoa. Queria dar uma folheada em algo no avião, e achou que, se ia voltar a praticar leitura, devia fazer direito. Seu autor favorito certamente iria lhe motivar. Melancólico, triste, porém com uma pinta de verdade. Um fingidor, como o próprio se nomeia. Mas um bom fingidor. Um homem de dores. Muito melhor que ele próprio, que transitava por todos os sentimentos, sem sentir nenhum. Começou a leitura:

"O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente."

A dor que deveras sente? Deve ser por isso que nunca chegou a ser bom escritor como Fernando. Nunca chegaria aos pés de um que consegue viver os personagens, com toda sua delicadeza e entusiasmo. Não sentia aquela dor. Nem alegria, medo, culpa, rancor. Enquanto os personagens descabelavam-se, ele apenas canetava, canetava, canetava... Tinha que nascer com aptidão para algo, e a dele era essa. Rabiscar, construir, descrever, revelar. Dar vida à algo. Algo que poderia existir, sim. Mas nunca dentro dele. Afinal, Roberto é só mais um. O texto é muito mais que isso. É único. É maior que ele.

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